domingo, 1 de novembro de 2009

A verdadeira história de Caim...

O caro leitor já alguma vez colocou, como hipótese, a possibilidade de ter sido trocado no acto de nascer? Já equacionou sobre a possibilidade de nenhum daqueles que considera ser seus progenitores o serem?

Dir-me-ão e com plena aceitabilidade: «Isso é outra narrativa, é outra história, que não a minha».

Há uns anos atrás coloquei as mesmas questões a uma das maiores especialistas de José Saramago, tendo como base o livro que suscitou tanta polémica na altura, «O Evangelho Segundo Jesus Cristo». E a referida especialista, muito incomodada com a questão, respondeu da mesma forma que referi no 2º parágrafo deste reflexão. Ao não entender a minha questão, eu acrescentei que se passava exactamente o mesmo com o livro de J. Saramago. Aquela história nada tinha a ver com a história do nascimento de Jesus Cristo, de acordo com os Evangelhos que as várias Igrejas consagraram como Canónicos.

A história criada por Saramago é, efectivamente, uma outra história com digressões totalmente opostas àquelas que os Apóstolos nos legaram. E o mesmo se trata com a história de Caim, como iremos observar.

Os gregos tinham duas palavras para o determinante indefinido «outro»: «allos», para designar outro da mesma natureza, do mesmo tipo e valor; «heteros», para designar outro de natureza diferente. É isso que vemos, por exemplo em Gálatas 1: 6 e 7. Paulo diz aos crentes da Galácia que se admirava de eles estarem passando para outro «heteros» evangelho, o qual não era outro «allos», da mesma natureza. E refere Paulo que os portadores do «heteros evangelho» desejavam perturbar e perverter o evangelho de Cristo. E a repulsa Paulina em relação a esses perturbadores é de tal grandeza que ele os considera como «anátemas» (Gál. 1:9).

O anterior parágrafo serve para reforçar o que afirmámos na introdução. Tanto «O Evangelho de Jesus Cristo» como «Caim» são pseudo-evangelhos, de natureza bem distinta e com base e filosofias bem preconceituosas quanto à Bíblia e ao Deus que os cristão adoram e que consideram como Seu autor. E isto seria suficiente para não dramatizarmos as «digressões», as viagens por outros mares, as interpretações, os comentários, as explanações, a agressividade verbal, a intolerância religiosa, etc, que caracterizam J. Saramago e algumas das suas obras, algumas das quais já estudei. Não é, nem será, o último a querer assumir-se como senhor do universo, como intelectual iluminado, considerando os cristãos como «parvos» no sentido etimológico da palavra, ou seja, de pequena dimensão intelectual. Tantos outros o tentaram antes dele e o que conseguiram foi exactamente o contrário das suas reais pretensões. A oposição ao Cristianismo gera sempre mais crescimento! Aleluia! Por isso, uma palavra de incentivo aos leitores cristãos ... e uma «palavra de agradecimento» a J. Saramago. Ao querer J. Saramago anular a minha fé, mais o Espírito Santo a renova, mais ela é sustentada em Cristo. Que bom!

Vamos, pois, à verdadeira história de Caim, relatada em Génesis, Capítulo 4, do verso 1 ao 16. E agradeço ao amigo leitor a sua boa-vontade para a leitura desta reflexão. Irei apresentá-la em ligeiros pontos, para mais fácil leitura e reflexão da vossa parte. No entanto, como nota adicional, muito importante, ninguém que se abeira da Bíblia deve descurar uma regra essencial de Hermenêutica - «Um texto só pode ser interpretado à luz do seu contexto». Por outras palavras, um texto bíblico não pode ser isolado do seu contexto mediato e imediato, próximo ou distante, ou seja, a Bíblia interpreta-se com a própria Bíblia. E quando nos referimos à Bíblia referimo-nos a toda ela: Velho Testamento e Novo Testamento. Assim:

1º - Tendo em conta o tempo e o espaço inerentes a qualquer narrativa, verificamos que o cap. 4 surge depois do afastamento de Adão e Eva do Éden, facto muito importante, visto que nos mostra a consequência da rebelião do homem em relação a Deus;

2º - Esta história (verídica e não ficcional) passa-se no âmbito de uma família onde Deus não está presente, já que o pecado é exactamente isso, ou seja, relações cortadas com Deus, na medida em que o homem prescinde de Deus. E a História regista variadíssimas tragédias com pessoas e em famílias onde o ateísmo reina ... e depois questionam: «Onde está Deus?»; «Que Deus é este que deixa que haja tragédias, violência, morte?». E a resposta é simples: Está exactamente no lugar onde estava quando decidiram viver de costa voltadas para Ele. Antes não queriam nada com Deus; agora reclamam por Ele não agir. Curioso, não é?

3º - Nos primeiros versículos do cap. 4 de Génesis verificamos que não havia qualquer diálogo entre Deus e a primeira família no mundo. Também verificamos que não há qualquer exigência de Deus em relação àquilo que pretendia do casal. Porquê? As directrizes Divinas já tinham sido comunicadas quando a relação com Deus ainda não tinha sido afectada pelo pecado da rebelião, do «querer ser igual a Deus», ideia inculcada na mente do casal pelo diabo. Refiro-me, neste contexto, a uma: Deus era o Senhor de todas as coisas e o homem apenas mordomo. Era uma questão de soberania, posta em causa por Adão e Eva, que não queriam ser responsabilizados por Deus. Algo que ainda hoje acontece, fundamentalmente a nível das agressões à Natureza;

4º - Nos primeiros versículos do mesmo capítulo, verificamos duas curiosas posturas nos filhos que entretanto nasceram no primeiro lar terreno. Não sabemos o que é que os pais lhes terão ensinado sobre a Soberania do Deus que os criara e contra quem tinham transgredido. O que sabemos é que «Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor» e Abel «trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste». (cap. 4:3 e 4). Sabemos depois que o Senhor se tinha agradado de Abel e da sua oferta, ao passo que não se tinha agradado de Caim e da sua oferta.

5º - Notemos aqui três pontos essenciais:

a) O texto refere que o agrado de Deus foi, em primeiro lugar, pela pessoa. Só depois é que se refere aos produtos. Toda a Bíblia é bem clara na importância que Deus dá à criatura que Ele criou, dando-lhe mesmo proeminência sobre o resto da criação;

b) Abel levou ao Senhor as «primícias» do seu rebanho. Isto quer dizer que ofereceu ao Senhor as primeiras coisas, conferindo-lhe o primeiro lugar. Podia guardá-las para si; podia dar-lhe o que não presta; podia dar-lhe as sobras; etc., (algo que é paradigma de muitas pessoas), mas Abel considerou que tudo o que era e tinha o devia ao Senhor Deus que havia criado os seus pais: Gratidão? Reconhecimento da soberania de Deus? Reconhecimento do seu estatuto como mordomo e não dono? Sim! Sim! Sim!

c) A questão da atitude e do carácter dos irmãos da nossa história não se circunscreve a Gén. 4. E como a Bíblia interpreta a própria Bíblia, porquanto o Autor é o mesmo, temos que nos socorrer de outros textos, apesar de tão distantes no tempo,. Nomeadamente de Hebreus cap. 11 versículo 4, que nos diz «Pela fé Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifico do que Caim; pelo qual obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela, também depois de morto ainda fala». Ah! Como sabe bem validar as impressões colhidas em Génesis! Abel foi colocado na galeria dos heróis da fé, não por causa da sua oferta, mas por causa do seu carácter. Deus conhecia, obviamente, as motivações, os pensamentos, o carácter de cada um dos ofertantes. E se Deus era o destinatário das ofertas, também tem todo o direito de avaliar o que recebe, mas igualmente o que está por detrás delas, bem como o que a oferta encerra dentro de si mesma. E essa foi a razão pela qual Deus aceitou Abel e recusou Caim e as suas ofertas.

6º - Voltando o nosso olhar para Gén. 4, versículos 5 e 6, verificamos que Caim ficou com o seu semblante descaído, possuído por ira. É interessante notar que é Deus que toma a iniciativa de dialogar com Caim! Que Deus é este que se incomoda com as raízes de amargura que se instalam na vida dos homens? Não é, certamente, um Deus vingativo, cruel, distanciado das suas criaturas. É um Deus que aborda as coisas como elas são e sabe que se o homem não for gestor dos seus impulsos, estes tornam-se donos de si mesmo;

7º - Na sequência do diálogo entre Deus e Caim, Gén. 4:7, também verificamos três coisas relevantes:

a) Deus concede a Caim o direito de pensar, de entrar dentro de si, algo muito importante para a noção daquilo que somos. Se o homem usasse essa arte de se interrogar a si mesmo, veria como há tanta coisa errada dentro de si;

b) Deus chama a atenção a Caim que o pecado jazia ali bem perto de si, à sua «porta». E acrescenta ainda que «o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo». É uma questão de livre arbítrio. Deus não nos criou autómatos, como robôs, como executores da Sua vontade e sem vontade própria. Se assim fosse, haveria muitos a reclamarem: «Eu não sou, nem posso ser ateu; eu não tenho vontade própria, etc». No entanto, na medida em que Deus dá-nos a possibilidade de dizermos-lhe sim, ou não, reclamamos contra Ele porque Deus não agiu nos espaços de onde O retirámos.

c) Em nenhum momento do diálogo entre Caim e Deus se nota um desejo de Caim matar o próprio Deus. Saramago diz que «Caim é humilhado por Deus e mata o seu irmão porque não pode matar Deus, que era o que queria». Em nenhum momento da narrativa transparece tal desejo. Nem nas entrelinhas, a não ser que Caim tivesse desabafado com Saramago sobre essa questão. Contudo, parece-nos que tal desejo, se ele existisse, Deus o revelaria, já que não teria razões para o omitir. Por outro lado, se a hetero-história de Saramago fosse verdade, ainda mais poderíamos realçar a grandeza de Deus: «Que Deus é este que consegue dialogar com alguém que o quer matar?; Que Deus é este que pretende anular a influência da ira no coração de quem lhe quer tanto mal?». Afinal, se a história Saramaguiana fosse real, ainda mais realçaria a grandeza do Deus que eu sigo, amo e sirvo;

8º - A partir do versículo 8, verificamos de que nada serviu o diálogo de Deus com Caim. Foi inequivocamente inútil. Como foi e é com muitas pessoas que somente querem que Deus os ajude, sem qualquer compromisso com Ele; como foi e é com pessoas que se aproximam de Deus com arrogância, com presunção, sem qualquer interesse em se submeterem às Suas directrizes. A esse tipo de pessoas Pascal responde:« Deus dá sinais claros a quem O deseja encontrar e sinais escuros a quem não o deseja encontrar». Afinal. o pecado tinha criado raízes em Caim. Não foi gestor dos seus malvados sentimentos ... e ... de forma premeditada, convidou o seu irmão a irem até ao campo (Gén. 4:8). Ali não teria testemunhas que pudessem verbalizar o acto que premeditara. A não ser aquEle que observa todas as coisas, visíveis e invisíveis, mesmo que haja quem não acredite nisso. E a prova é que depois do acto consumado, Deus volta a dialogar com Caim. Qual a razão pela qual Saramago não vê nesse facto a prova irrefutável da Omnipresença e Omnisciência de Deus? O seu preconceito contra Deus impede tal reflexão;

9º - A partir do versículo 9 vemos Deus a dialogar, por Sua iniciativa, com Caim. E deste diálogo retiramos três apontamentos:

a) Deus procura o pecador, apontando-lhe o seu pecado. Este facto revela, de forma inequívoca, que não estamos em presença de um Deus violento, que gosta de sangue, que se alegra quando reina a violência. Pelo contrário. Uma coisa é Deus permitir que a maldade se espalhe, como resultado do alheamento dos homens e das nações em relação a Si mesmo, outra coisa é Deus estimular, apoiar, aprovar. Não podemos concluir, com toda a honestidade intelectual, qualquer vislumbre de um Deus tirano, déspota;

b) Caim foge e sacode a culpa dos seus ombros, que não do coração, visto que ele sabia o que tinha feito. Vejamos o versículo 9: «Disse o Senhor a Caim «onde está o teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso sou eu guardador do meu irmão?». No fundo, Caim representa todos os homens que não assumem as suas responsabilidades, que conseguem passar a mensagem de inocência, esquecendo-se que, acima dos tribunais e julgamentos humanos, está um Deus que tudo sabe e que a seu tempo revelará o que está oculto;

c) Será que Caim tem defesa? Quem foi cantado na galeria dos heróis da fé, em Hebreus 11, foi Abel. Como se fosse um daqueles que «por obras valerosas se vão da lei da morte libertando». Havia que contrariar esse destino que Hebreus consagrou e o nosso Luís de Camões evidenciou na sua maravilhosa Epopeia. E eis-nos chegados a esse tempo. Os maus também merecem ser «cantados», mesmo que seja por um exemplar único e ... «Nobel da Literatura». A vida é assim. E a liberdade de pensamento e de expressão isso possibilitam. No entanto, parece-nos ser mais evidente que quem merecia ser cantado por Saramago era a vítima e não o agressor. «Mudam-se os tempos e muda-se a vontade».

Muitas outros detalhes poderíamos alinhavar nesta reflexão. Todavia, não queremos abusar da paciência dos nossos leitores. No entanto, permitam-me realçar, de forma muito sintética, o resto da história.

Deus continua o seu diálogo com Caim. E confronta Caim com o seu pecado. O nosso Deus não convive com o pecado e, de forma muito clara, leva o homem a reflectir sobre a sua condição de pecador. E igualmente de forma muito transparente revela que o pecado produz consequências. Os homens não querem que haja salário para o seu pecado. Querem pecar, mas não querem sofrer as consequências das suas transgressões. Mas a vida espiritual é assim mesmo, mesmo que os homens não o queiram.

Quando o Senhor Deus, de acordo com Génesis 4:11, disse que Caim seria maldito em toda a terra, Caim perturbou-se. É natural. Este é o retrato dos homens que vêem recair sobre si mesmo as consequências das suas opções. Contudo a narrativa prossegue. E vemos que Caim argumenta, no verso 14, que seria fugitivo e errante pela terra e manifesta medo de ser objecto de qualquer crime contra si ... mas, acima de tudo, e em primeiro lugar, refere «Eis que hoje me lanças da face da terra e da tua presença hei-de esconder-me». Não foi pelo seu mérito, ou por qualquer erro Divino, que Caim viu ser alterado tal cenário, mas exclusivamente pela benignidade de Deus. «Que Deus é este que perdoa tamanho pecado?» Trata-se de um Deus que detesta o pecado, mas ama o pecador e concede-lhe a oportunidade dele se arrepender! Que amor tão singular, exactamente evidenciado no Gólgota, pelo Emanuel, Jesus Cristo, quando, ao ser objecto de tanto ódio, ao ver o Seu sangue a jorrar pelo Seu corpo e pela cruz onde estava a ser crucificado, consegue dizer: «Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem».

Há pessoas que não vêem porque não querem ver! Eu sei que a fé não é de todos, como nos refere Bíblia, mas também ela diz: «Provai e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele confia» (Salmo 34:8). Este é o desafio que faço a Saramago. E esta é também a minha oração: «Senhor, perdoa-lhe porque ele não sabe o que diz. Senhor, dá-lhe ainda a possibilidade de ele aceitar dialogar contigo, em atitude de humildade e quebrantamento. Oro para que ele esteja preparado para o acerto de contas contigo, antes que se concretize a ida do seu corpo para o pó, de onde foi formado, e o seu espírito volte para ti. E que tu, Senhor, sejas mais uma vez exaltado mesmo diante de quadros aparentemente desfavoráveis!

Pr. José Lopes